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Questionarte

Questionarte

 Questionar pela arte (Editado por Insat - Autores: José Neto, Elizabete Lucas e Aristides Menezes)

(Colaboraram com o projecto estando representados diversos artistas do MAC - Ver na rubrica artistas)

Em alternativa, a questão “Quando é arte?” proporciona múltiplas respostas munidas de sentido prático e adequadas aos mais diversos casos. Assim o investidor dirá “É arte quando se apresenta como um bom investimento”; o galerista responderá “É arte quando a clientela compra”; o curador retorquirá “É arte quando obedece aos critérios expositivos”; o observador afirmará “É arte quando eu gosto”; o artista concluirá “É arte quando exprimo o meu pensar”, etc. Como síntese combinatória de todas as possibilidades, a resposta a esta questão resulta muito mais honesta e directa, deixando cair de vez o véu da teatralidade social: “É arte sempre que determinado círculo a confirma como tal”. Aqui não restam definições a tratar, pois a figura geométrica do círculo é intuitiva, sendo de imediato identificada como característica de um grupo humano fechado em si, unificado em torno de objectivos e interesses comuns. Conforme será fácil de entender, se cada círculo define o que é arte, então o que é arte para o círculo “A” poderá não o ser para o círculo “B”, porque cada conjunto tem motivações distintas. Por muito frontal - e até mesmo chocante - que esta abordagem possa manifestar-se, há que convir que se enquadra perfeitamente na realidade economicista da nossa época.

Para além desta contenda entre formas de questionar a arte, importa referir que quando alguém se questiona perante um trabalho artístico, não se questiona acerca de “O que é arte?” nem mesmo “Quando é arte?”, mas sim “Porque é que X é arte?” (sendo X “aquilo que está perante mim” a que diariamente chamamos “isto”). Assim, a questão essencial que o observador formula é: “Porque é que isto é arte?”. Ao que - na sequência do acima descrito - poderemos responder de forma pragmática: “É arte porque determinado círculo a confirma como tal”. 

Conforme já mencionei, o significado dos conceitos é variável em função das convenções lógico/históricas. As épocas vão-se sucedendo e com elas o pensamento e a interpretação da realidade sofrem alterações, mas a necessidade lógica (em sentido lato) de rigor conceptual mantém-se e reitera-se, por duas razões; existe a consciência dos valores da tradição e (com esta) surge o dever da preservação dos significados do passado (como referência) e a obrigação da sua transmissão aos vindouros (como sentido); são necessárias regras comuns a todos para haver comunicação. Por isso a lógica (em sentido estrito) é um conjunto de regras convencionadas como suporte operacional da linguagem (oral ou escrita), de forma a que esta possa exteriorizar uma pensabilidade entendível. Afirmado isto, apesar de a discussão de pendor lógico em torno das questões acima apresentadas, importa que não se fique com a ideia errónea de que o estatuto de arte apenas ocorre pela confirmação alheia (em função do interesse), ou estaríamos a incorrer no erro básico de considerar que todas as obras do passado, presente (ou mesmo do futuro) ainda não conhecidas - não são arte. É que apesar de ainda não as conhecermos (antes de a História as descobrir e no-las apresentar) como arte, elas existiam e eram-no, são-no (e sê-lo-ão) para os respectivos autores e os seus contemporâneos. 

 

Da produção teórica em torno da arte
Quando nas décadas de 80 e 90 do séc. XX se deu a expansão da tecnologia informática ocorreu uma maximização da capacidade de trabalho, que gerou uma necessidade geral de praticar metodologias mais recentes. Tal levou à atracção entre áreas do conhecimento até então estanques entre si. Um dos mais recentes casos de aproximação entre uma área do conhecimento científico e o estudo artístico deu-se pela união entre neurociência e estética. Tal fez surgir uma das mais recentes actualizações teóricas da arte: a neuroestética. Em traços gerais esta perspectiva busca o princípio biológico do belo e considera a arte como um subproduto da função evolutiva do cérebro.

Numa análise sumária pode dizer-se que um conhecimento contemporâneo que pretende encontrar o princípio biológico do belo, está a privilegiar a perspectiva estética de Immanuel Kant (1724-1804), visto que este autor a definiu como sendo a análise do belo em função da forma. Se no presente determinado projecto de investigação adopta uma concepção estética centrada no belo, então dá primazia ao princípio de prazer. Embora tal opção esteja em sintonia com a matriz cultural do Ocidente (a qual segue o princípio de prazer e evita tudo o que lhe seja oposto), a grande questão é que ao centrar a atenção no estudo no belo, relega para segundo plano fenómenos históricos contemporâneos tão importantes como sejam a exploração máxima do belo e harmonioso pela propaganda da supremacia da raça ariana, fenómeno que - como se sabe - foi acompanhado pelo contraponto da violência sistemática patente no Holocausto. Se nesse ponto da História surgiu a dicotomia belo/horroroso, todos os estudos daí em diante deveriam (por uma questão ética) ter esta dualidade em conta. Refira-se que antes da estética Kantiana, já Gottlieb Baumgarten (1714-1762) definira estética como «…Ciência do sentir…», o que libertava o observador da restrição ao belo. 

Uma outra teoria que começa a ganhar peso é a da arte como comunicação. Esta é fruto de duas influências. A primeira deriva directamente da tecnologia digital aplicada ao tratamento da informação e explora a relação emissor/receptor. A segunda influência deriva da necessidade de o meio académico integrar suportes audiovisuais e soluções multimédia nos seus programas, o que - por arrasto - importa consigo um erro conceptual, representado na definição que entende os media como “meios de comunicação”.

É falso dizer que os media são meios de comunicação (porque nem todos os media cumprem uma verdadeira função comunicacional). Para entender esta imprecisão há que recuar até ao significado e sentido da palavra “comunicação” pois para que tal conceito seja válido na sua aplicação deve cumprir duas condições: os seus intervenientes (termos da função comunicacional) devem ter comunhão de meio e estar em reciprocidade entre si. Assim, jamais deveria chamar-se meios de comunicação à televisão, à rádio ou aos jornais, porque não há reciprocidade entre emissor e receptor. É que nestes casos o sujeito capta a informação mas não pode responder em tempo real - nem pelo mesmo meio. Se não há comunhão de meio nem reciprocidade, então estes “media” devem ser referidos como “meios de transmissão”.

A aplicação da teoria da comunicação à arte apenas resulta correcta no caso das artes performativas, pois aqui cumprem-se as duas condições referidas acima, visto que nada impede o público (a não ser a repressão moral do comportamento) de poder interagir directa e presencialmente numa performance. O uso desta teoria em relação às artes plásticas não tem fundamento porque, embora se possa dizer que um autor (pintor, escultor, etc.) transmita uma mensagem imanente à sua obra e esta – por si – possa comunicá-la ao observador, já este último - por sua vez - não pode comunicar nada à obra e muito menos transmitir uma mensagem ao trabalho artístico de maneira a comunicá-la ao autor da obra. Mesmo que o observador exercesse vandalismo ou iconoclastia sobre o que tem à sua frente - de maneira a vir a afectar o seu autor -, ainda assim - isso não seria comunicação.


A questão epistemológica
Esta larga derivação serviu para introduzir o seguinte problema. Quando áreas do conhecimento tão distintas como o são arte e ciência se pretendem fazer articular no mesmo patíbulo, está a gerar-se uma situação epistemológica de grande complexidade, pois a metodologia científica tem um carácter objectivo (submetida aos ideais de verdade e universalidade) que não deveria ser equacionado em relação à arte. Tal atitude seria válida e adequada se a arte fosse apenas um processo estritamente racional cujo resultado fosse previsível como numa técnica o é. Mas se a técnica (qualquer que ela seja) tem a função de suportar a indústria (maximizando a capacidade mecânica do trabalho) já o mesmo não pode exigir-se à arte, visto que esta não tem que ter uma função definida, em virtude de ser produto da espontaneidade da consciência. Tal significa que a potencialidade de fazer arte permanecerá como dimensão subjectiva do artista, vedando qualquer condição de possibilidade de vir a ser ciência. Consciência não é Ciência, pois uma é subjectiva (individualista) e a outra objectiva (universalista). Por isso afirmo que aplicar às teorias da arte e ao ensino da arte a matriz científica, embora possa representar um reconhecimento académico a curto prazo, é um passo largo para acabar com a arte em si, pela futura redução desta à mera condição de técnica.


O fim da arte
«Como será possível acabar com a arte?» questionar-se-á o leitor. Tal aparente impossibilidade é muito fácil de concretizar. A confusão (fusão de contextos) epistemológica em torno da arte associada à situação crónica de contenção económica, acentua a elitização da produção artística. Tal condiciona e dita socialmente os paradigmas do que é apresentado como arte. Assim, para que o fim da arte se concretize bastará que todos os produtos resultantes da osmose entre arte e técnica sejam considerados arte. Por outras palavras, se a fusão entre as diversas técnicas artísticas e as “multimediáticas” (chamemos-lhes assim) for tal que seja impossível estabelecer as devidas diferenças - tudo passa a ser arte. Tenhamos em conta que nos certames artísticos internacionais mais de metade da arte é apresentada em suporte virtual, ou executada com recurso à tecnologia digital e já está muito mais próxima do que pode ser considerado como técnica. Tal não nos deve chocar. No entanto temos que estar atentos e conscientes, porque se tudo for considerado arte, então a arte deixa de existir como valor social e cultural onde o humano intervém directamente, pelo que bem poderá num futuro próximo ser um produto feito por máquinas. 
A grande questão com que este parágrafo nos confronta é a seguinte: se os paradigmas do que nos é apresentado como arte tiverem um predomínio tal da técnica, que vá minimizando a intervenção humana, então a consciência artística (como corolário da liberdade pessoal) passará a um processo de anulação crescente, porque a intervenção do trabalho humano deixará de ser valorizada e reconhecida. Desta tecno-postura resulta um dinamismo de critérios e o que é arte aqui e agora (para determinado círculo) poderá deixar de o ser amanhã, à medida que os interesses se alterarem. Se essa imponderabilidade se verificar para a arte aplicar-se-á igualmente ao artista, pelo que aquele que é considerado artista hoje - poderá deixar de o ser amanhã.


O princípio da arte
Apesar das convulsões cíclicas do sistema e do que nos é apresentado como arte reconhecida, a capacidade de produção artística jamais deixará de existir como atitude humana subjectiva que projecta o ser humano a exprimir os conteúdos da consciência num suporte. Entenda-se que a tomada de consciência é o princípio da arte. Fazemos arte porque temos consciência, porque o fazer arte é a expressão máxima da nossa tomada de consciência. Consciência da finitude, consciência de si, consciência da nossa posição em relação ao outro e ao Mundo que nos rodeia e consciência de que, nem todas as actividades humanas têm que ter uma função definida de mercado, pois o que brota de nós é de um valor psicológico inestimável, perante o hábito e a indiferença. 

Penso que é chegado o momento de cada artista fazer um corte epistemológico, deixando de consumir modelos culturais importados e assumindo o dever est-ético (neologismo meu que refere Ludwig Wittgenstein quando no “Tratado Lógico-filosófico” afirma «…A Ética e a Estética são UM.») de exprimir o mais genuíno que vai no seu ser, marcando a sua posição - como autor - em sociedade. Perante as adversidades do quotidiano importa que tenhamos presença de espírito e não desanimemos. Lembremo-nos que o artista é o mais livre dos seres humanos, por isso deverá sentir-se como o mais digno, isto porque nem mesmo o Estado está habilitado a dizer quem é ou não é artista. Essa é uma decisão pessoal como a mais intrínseca manifestação de liberdade – mas não só. É que se os critérios sociais de liberdade (assim como os critérios daquilo que é considerado arte) oscilam segundo o poder das vontades exteriores ao indivíduo, então a - arte em si - é uma matriz de dignidade como a mais séria possibilidade de libertação mental. A arte é um exercício de disciplina que vai temperando o nosso espírito, corrigindo a nossa forma de pensar e que vai apoiando e confirmando o nosso sentido da vida perante a realidade - até ao nosso último suspiro. 

Cada um de nós poderá sofrer, ser apontado como personificação da figura antropológica do “outro” (aquele que ousa ser diferente), sendo - por isso - tratado com indiferença e bem poderá nunca vir a encontrar o nível de reconhecimento que merece em vida, mas pensemos que cada artista tem o privilégio de ter uma ligação directa entre a sua consciência e a estrutura da realidade. Quem poderá dizer ao soltar o último suspiro: «Vivi como entendi que deveria ser!…»? Quem mais tem o privilégio de pronunciar esta consciência est-ética?


QUESTIONARTE
Por tudo o que foi escrito antes, em relação ao que irão ver adiante pouco importa quem é o autor, que formação tem, qual o seu curriculum, qual o seu nível de reconhecimento ou o respectivo estatuto social. Aqui não existe essa discriminação, pois importa entender que tais critérios de fama não são sinónimos de arte, mas da influência imposta pelo mercado da arte. Aqui são proporcionadas ao observador condições de isenção tais que, o colocam perante a reprodução do trabalho artístico como se de uma exposição se tratasse. Isto para que possa ser proferido um juízo de gosto estético (positivo ou negativo), despolarizado e aplicado unicamente ao grafismo da obra. Nessa relação interna o sujeito questionará e questionar-se-á perante o que está diante de si. Essa é a essência da arte - porque essa é a essência da nossa vida.

Quando estamos perante a generosa presença de uma imagem a atenção nada mais tem para ‘ler’ e (con)centra-se nesse motivo, para só depois vir a satisfazer a curiosidade complementar pela leitura dos dados da ficha técnica. Não é o caso que - por isso - aqui se aplique a máxima oriental «…Uma imagem vale mais que mil palavras…», pois - para além dos hábitos mediáticos - imagens e palavras são registos muito diferentes entre si, os quais requerem a aplicação de diferentes formas de cognição. Assim o observador será obrigado a distanciar-se do predomínio da razão que advém da influência da escrita alfabética, pois a arte não tem que ser entendida nem explicada (como se fosse uma escrita alfabética), mas tão só partilhada com o próximo como sendo a mais abstracta geratriz de sensação. Cabe a cada um senti-la à sua maneira. Nesta estética (consciência do sentir - no meu entender) as imagens estão libertas do preconceito, porque se é uma clara evidência que a partir do momento em que o artista acaba o seu trabalho a obra ganha autonomia, então aqui a obra é apresentada como emancipada.

Esta publicação assume assim uma atitude purista e alternativa. Purista porque apresenta a imagem – na sua pureza e ipseidade. Alternativa porque (propõe uma outra postura) “alter” + “nativa” (relativa à nossa terra natal), levando a deduzir que alternativa é (neste caso) a exteriorização de um desejo de querer o melhor possível para a realidade artística.

José Neto

 

(Transcrito da Introdução do livro "Questionarte)

Consultar:

www.insat.pt/questionarte